domingo, 8 de julho de 2007

A FÉ DOS HOMENS


O João corria com uma ânsia de medo, misturada com pressa de cumprir o horário da entrega do livro na encadernação para que fossem douradas as capas.
Antes, aprendera a cozê-los com uma agulha grossa e um fio que mostrava estar ali para agarrar as folhas para sempre.
O seu mestre fazia o trabalho de recuperação de livros velhos, sentado numa cadeira de rodas, pela imobilidade a que estava sujeito. Era um trabalho artesanal feito com mestria e pouca desenvoltura, como as coisas com mestria pedem que se façam.
Por isso o João aprendera devagar, mesmo nas horas de pausa do mestre Aniceto, que dava as indicações enquanto almoçava aquelas sardinhas de escabeche com muito azeite e cebola.
Quantas vezes o João se questionava, quanto à frequência com que o mestre Aniceto comia sardinhas com muito azeite…
Passada a hora de almoço do mestre, o João tinha tempo então de ir num ápice, a correr a sua casa no bairro mais limítrofe da cidade, comer um prato de massa com feijão, que o esperava já colocado na mesa acompanhado da advertência materna, da necessidade de comer depressa, pois o mestre não perderia pela demora em repreendê-lo caso chegasse atrasado ao ofício…
Os catorze anos do João, permitiam-lhe digerir rapidamente a proteica refeição, desde a entrada na cidade até ao espaço intra-muros, da habitação do mestre Aniceto.
Era na velha mouraria que se situava a habitação do artesão, homem de quarenta e tal anos, que vivendo com sua mãe e irmã solteira, de idade idêntica à sua, necessitava de um aprendiz que fosse elemento reforçador de vontades e impossibilidades de toda aquela família.
O João percebia a dificuldade do mestre em mover-se para fora daquela casa de primeiro andar pela deficiência motora óbvia, que talvez por isso, o transformava por vezes numa pessoa estranha, inexpressiva por vezes e por outras com expressão a mais.
A irmã ligeiramente mais nova, muito alta e ligeiramente curvada na parte superior do corpo, debitava ondas de calor que ao João sabiam a uma comida estranha, pela proximidade a que a mulher por vezes se colocava em relação a ele.
A mãe de ambos, mulher igualmente alta, de compleição física forte, toda vestida de negro, berrava constantemente, e mandava o João à rua comprar as «mercearias» diariamente, interrompendo a labuta da cozedura dos livros.
O mestre Aniceto protestava energicamente com a mãe pelo facto, uma vez que o trabalho do João era necessário para a cozedura dos livros. Iniciava-se uma vibrante discussão entre mãe e filho, enquanto era visível a fuga da filha para uma das dependências da habitação.
O João aguardava nervosa e quotidianamente, o desfecho das discussões, de decibéis elevadíssimos que normalmente acabava com a conclusão que parecia ser de aceitação unânime:
-Então o gaiato não é nosso criado?? Posso mandá-lo onde eu quiser e não tens nada com isso!!Esqueceste quem carrega com essa carga de ossos todos os dias para a cama??
Vá!...vai lá à mercearia e traz ¼ de feijão encarnado, 250gr de manteiga e meio litro de azeite!! E não te demores que tens que trabalhar ouviste??
O João trazia as comedorias encomendadas, que ficavam registadas no livro comprido dos «fiados» da mercearia, sentava-se de novo na sua mesa improvisada de trabalho, pegava na agulha e desatava a coser os livros com o rigor e concentração que o mestre Aniceto lhe recomendava.
Trabalhava e pensava.
Pensava nas horas a que iria poder sair dali, pois havia retomado a Escola tal como fora a promessa do pai, que dissera que, logo que fizesse os 14 anos, iria estudar à noite e isso alegrava-o.
Tinha sido um choque a sua retirada da escola aos 12 anos.
Todos os dias as aulas começariam às 7 horas da noite e trabalhar depressa era o seu objectivo.
Pensava ainda, que havia que fazer face aos encargos da casa, ordenara o pai, perante o olhar lacrimejante e silencioso da mãe, que gostaria de ver os filhos prosseguir os estudos regulares.
Todos não seriam demais para pôr a vida da família, de mãe doméstica, pai operário e três filhos, em equilíbrio embora precário.
Eram os 5$00 diários, que multiplicados pelos 6 dias da semana, levavam o pai do rapaz semanalmente, à mouraria, para agradecer o grande favor ao mestre Aniceto de manter o seu filho naquele digno ofício e receber a semanada pelo trabalho do João.

-João !...Vais levar estes livros para dourar as capas ao Sr. José Miguel e não te demores porque são quase 7 horas e ele deve estar a fechar…e depois podes ir para casa…
O Sr. José Miguel tinha a arte de dourar os livros depois de encadernados. Vivia na extremidade norte da cidade, que distava da mouraria mais de meia hora de caminho. O João teria que correr e muito, para chegar a casa depois de deixar os livros a dourar. Não estaria a jantar antes das 8 horas da noite, perderia uma ou duas aulas e muitas vezes não jantava porque, não queria deixar de estudar assim…

Em silêncio… porque se vivia assim no tempo em que era aprendiz de encadernador, o João passava todos os dias pela Igreja que ficava à esquerda do seu percurso para a Escola.
Por vezes pensava entrar e sem abrandar o passo, sorria quando se imaginava a entrar e a pedir algo para si…
Mas o João tinha muita dificuldade em dar nome às emoções que sentia, porque achava ele, que os deuses se zangam muito uns com os outros e que muitos adultos lhes eram devotos, mesmo em silêncio…

5 comentários:

Anônimo disse...

Se eu fosse uma crítica literária dissertaria sobre a construção do texto; sobre se o estilo é neo-realista; etc..
Mas, felizmente, estou liberta para apenas sentir.
Sentir um tempo de um Portugal distante. Orgulhosamente só...Mas,não
obstante, com meninos que Sonhavam o Futuro!

Anônimo disse...

Se eu fosse uma crítica literária dissertaria sobre a construção do texto; sobre se o estilo é neo-realista; etc..
Mas, felizmente, estou liberta para apenas sentir.
Sentir um tempo de um Portugal distante. Orgulhosamente só...Mas,não
obstante, com meninos que Sonhavam o Futuro!

Anônimo disse...

Gosto do que a leitura me "faz sentir". Gosto das lembranças dum passado, já um tanto esquecido. Gosto portanto destes textos que considero bastantes ricos, que me falam de gente da minha mocidade.
Obrigada
Eborense

chábeli disse...

Olha vizinho...
Bem escrito. Gostei da "viagem"que fiz ao antigamente.
Mas, será que existem, ainda, muitos "joãos"?
Decerto que sim, em vez de livros cozem tijolos, tecidos, tapetes...
Temos evoluído muito pouco. Mas vamos evoluindo.E isso é o suficiente para me deixar confiante no futuro, dos "joãos"ou ôes, tanto faz.
beijo

utopia-x-7 disse...

Olha, chabéli,
achei tão preciosa a tua intervenção que corri ao teu blogue para postar um comentário - dei com um enorme prado verdejante, cor simbólica (pelo menos em português) da esperança!
Faço votos para que plantes lá as tuas considerações lúcidas e solidárias.
E agradeço ao nosso querido anfitrião
esta oportunidade.