quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A NATUREZA DAS REVOLUÇÕES

O Vagão de Terceira Classe
Do telúrico enfeite das nossas vidas
Enjeitadas, porque assim a história o dirá,
Da terra vindas e por lá passado o parido
Nos dias do nosso mester, assim coagido
Em grutas de carvão, por pão quase derretido,
Por vós senhores ricos urbanos
Que geris a cidade do fumo e da fome
Dos nossos homens que se perdem e gastam no fole
Pais de filhos, esta gente, que vós ufanos
Vedes, engomados no óleo que alimenta a prole
Para que vós, com mais valias subtraídas à fome
Façais a história, que assim a história o dirá
Sobre nós,
Vindas do telúrico enfeite das nossas vidas.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

DANTE CONVERSA COM VIRGÍLIO

Dante e Virgílio no Inferno
Virgílio que dos céus imaginaste apenas raios
Que de Deus não tiveste o amor e o sofrimento
Romano como Horácio, poetas de Mecenas
Pecadores convictos por Ilíada e Odisseia
De Eneida, tua épica e irmã cara de sonho.

Aguardaste por mim, nos infernos dos justos
Como heróis por encontrar, numa ardente esfera
Das que unem e separam a procura do achamento
E por isso comigo subiste ao Purgatório em espera.

Narra-se que por eu ter fé, me seguiste crendo
Por cada terra e testamento de heroísmo
Crendo na epopeia que fosse luta com Lucífer.
Mas a salvação do poeta exposto em tempos de ti
Era inexistente além do sonho, na comédia em mim.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

TRAIÇÃO CONSENTIDA

A Morte de Marat

Bela eras na tua formosura, despida
Entre nenúfares de um rio sem corrente
Onde caíam pétalas de um roseiral
Devagar, sobre ideais de revolução cadente.
Mas assim morri nos sonhos de Cristo
Que crê, creio, na justiça do que é belo
Por traição tua e indigna da fé nele
Por ser tua a esfera das coisas assim
Trocaste o útil sentir do medo da sedução
Pelo cruel destino do perecer de mim

terça-feira, 13 de novembro de 2007

REVOLUÇÃO OU MORTE


Conheceram.se no contexto do PREC.
O Joel estaria na casa das duas dezenas de anos e o Vladimir das quatro.
As manifestações promovidas pelo PCP eram quase diárias e colidiam normalmente com as do PS.
As «decisões arbitrárias de destruição da dinâmica de desenvolvimento das cooperativas agrícolas e UCP´s, levadas a cabo por milhares de camponeses e assalariados do Alentejo», era o que estava em causa.
Não faltava fôlego ao pessoal das cooperativas, de cada vez que as palavras de ordem se impunham como arma de arremesso contra as« forças contra-revolucionárias que dominadas pelo grande capital, destruíam a vida dos operários, dos camponeses e dos trabalhadores em geral».
O Joel era um rapaz de punho erguido, palavra fácil e gestos prontos para a defesa dos ideais da revolução. Não faltava a uma reunião do partido integrado na sua célula.
O Vladimir aparecia poucas vezes, por razões de natureza familiar que o obrigavam a ir para a vila, onde tinha a mulher prostrada com um cancro na cabeça havia já 1 ano.
Vladimir era um homem baixo, esguio e rápido de raciocínio. Chegava a abandonar as reuniões partidárias, desrespeitando as orientações do camarada da concelhia, sujeitando-se às admoestações que viria a sofrer mais tarde ou mais cedo.
Sempre que era «aconselhado», procurava o Joel e entre garrafas de meio litro de vinho branco e cigarros Português Suave sem filtro, maldizia a sua sorte.
Joel, vezes sem conta, transportava-o num velho 2 cavalos, fosse a que horas fosse, para que pudesse ver a sua Joaquina, que duraria mais alguns dias ou meses sabia-se lá.
Vladimir era ternurento e referia-se à sua companheira, como se de uma parceira de luta se tratasse. Afinal ela não sabia mais que a lida da casa.
O Vladimir era enérgico e sabedor de leituras complicadas, apesar do seu bigode de corte antiquado ao jeito de feitor do Monte.
Atrevera-se a ler o Capital, e não raras vezes dissertava sobre o Materialismo Dialéctico, subvertendo toda a lógica do partido nas reuniões periódicas.
Qualquer pedaço de papel era bem aproveitado para nele escrever um poema e era com grande naturalidade que esbatia a diferença de idades entre si e os jovens militantes com quem preferia partilhar ideias, aventuras e sonhos. Distante dos seus colegas de ofício, mesmo que filiados no mesmo Partido, era por estes, visto como «de falas estranhas».
O Joel embriagado pela revolução, motivadora de acções radicais no seio das famílias, vira-se sem a sua e ouvia o Vladimir, que dissertava sobre o Materialismo Histórico, procurando nele a expressão mais profunda da felicidade humana, aquela que não transparecia no seio do Partido. Ele sabia que o caminho teria que ser por ali, mas considerava o processo mal conduzido, umas vezes contradizendo-se, outras chorando, outras extremando posições, sempre no seio dos seus camaradas.
Era frequente dirigirem-se, entre a constante dúvida sobre conceitos filosóficos subjacentes à doutrina Marxista e a esperança de matar a fome, à tasca do tio Igrejinha e aí jantarem em comunidade, entre jornaleiros, homens e mulheres sós na procura do limbo dos crentes, jovens de extrema esquerda e sempre mais alguém que entrava como se fosse costumeiro.
Os camaradas do Partido, fiéis aos princípios da doutrina, estavam sempre ausentes de locais que aglutinassem credos diferentes, ou alguma marginalidade. Qualquer discussão mais profunda sobre a tese, ou mesmo a antítese, destruiria toda a dinâmica da síntese revolucionária proposta pela cúpula.
O Vladimir procurava todos os momentos de pausa na desconcentração do Joel para descarregar a sua fúria inconformista na paciência e amizade deste. Por isso Joel ouvia, ouvia…enquanto aprendia a gerir a sua ingenuidade.

Naquelas noites de luta, havia sempre uma pausa para o teatro, onde se debitava Brecht, Molière, ou Marivaux, quase diariamente e onde os actores e actrizes se faziam portadores da mensagem, na vanguarda do processo revolucionário.
Após cada espectáculo, a ceia obrigatória unia os corações daquela grande prole da revolução, na cervejaria que mais tarde interrompesse o sonho permanente.

De madrugada, Vladimir e Joel recolhiam a casa, quase sempre ao mesmo tempo.
Viviam numa residência particular em que um casal de senhores de provecta idade lhes cedia um quarto com duas camas com roupa lavada e muita paciência, na constante incerteza da hora de entrada dos hóspedes.
As formas de abordarem os amores era bem distinta.
Joel, era assediado por algumas camaradas, que não se ensaiavam para lhe propor uma manhã, tarde ou noite de sexo travestida de amor, a que o Joel aderia com a singularidade que o caracterizava em matéria de afectos de inspiração Marxista.
Se a discussão da situação política do país obrigasse a uma reunião mais emergente, o sexo seria secundarizado. Eram as orientações do Partido.
O Vladimir ficava sempre, após cada aventura amorosa de Joel, na esperança de saber como tudo tinha acontecido, na esperança de um dia poder vir a apaixonar-se de forma comparativa, pela viúva de um coronel, que ostentava mais 20 centímetros que ele, mulher de cinquenta anos, com seios que denunciavam a amplitude de intenções que os caracterizava.
Era frequente saírem os três, para festas das redondezas, não anunciadas pelo partido, mas que o Vladimir identificava como pertencendo ao espaço da nossa individualidade, em comunhão com o povo.
Um jovem atlético na casa dos vinte anos, uma senhora respeitável com um metro e setenta e cinco, de carnes abundantes e comprimidas, de negro vestida, ornamentada com colares, e outros adereços ,embebidos em perfume caro e um sujeito de um metro e sessenta, magro, careca e de bigode suspeito. Eis o quadro que S. Dali interpretaria como ninguém na tela, se lhe acrescentarmos um veículo automóvel decadente na forma, como o são os 2cv. com mais de vinte anos, que pendia claramente para o lado que gentilmente Vladimir tinha disponibilizado para a senhora de negro.

Era inconcebível para o Joel que o seu amigo pensasse assim, dois anos apenas decorridos após a revolução dos cravos. A vida do partido estava acima de todas as tentações e vocações. Assim lhe era dito e assim ele entendia por «imperativo de defesa dos interesses dos trabalhadores, face às ofensivas das forças de direita, contra-revolucionárias».
O Joel estudava e a pouco e pouco descobrira escritores comunistas como Manuel da Fonseca ou Soeiro Pereira Gomes. Estas obras, eram parte do sumo da ideologia do Partido que o Joel ainda tanto admirava e servia.
O Vladimir amuava quando o seu amigo Joel não entendia, ou fazia não entender, que a verdade está mais «em quem acredita na essência das coisas e não nas coisas com essência». Era o seu discurso preferido.

A vida do Joel mudava progressivamente, quando começou a sentir que a azáfama dos estudos que ia desenvolvendo, não eram completamente compatíveis com a persistência de ideais contra-revolucionários do amigo Vladimir.
A viúva alegre, as contradições do processo revolucionário por ele defendidas, a ausência de carisma intelectual, apesar do tormentoso mundo de ideias que defendia e a sua teimosia em ostensivamente negar o poder, afastavam o seu amigo Joel.

Certa noite, Joel regressou como o costume a casa pelas 2 ou 3 da manhã e dirigiu-se ao quarto que partilhava com o seu amigo Vladimir.
Estanhara o aparente imediatismo do sono do Vladimir, que se recolhera mais cedo que o costume, e ao atravessar o extenso quarto, apercebia-se de que o rebelde e amargurado amigo a quem a mulher já tinha falecido, já dormia, encolhido debaixo das roupas da cama, aparentemente, como se alguém lhe tivesse afagado as mantas sobre o corpo, sendo visíveis as formas do corpo.
Joel deitara-se na sua cama, distante da do amigo, tal como o permitia a enormidade daquele quarto e nessa noite não reparara mais no seu amigo, que permanecia em postura amovível, adivinhando-se dali uma noite tranquila e calma.
No dia seguinte, Joel acordou e estranhou a permanência do Vladimir na posição em que o encontrara na noite anterior, coisa que não era habitual, sobretudo pela antecipação no amanhecer que levava o Vladimir a saltar da cama, antes mesmo que os senhorios.
Não raras vezes, era ele que batendo levemente à porta dos velhotes, fazia a pergunta já quase obrigatória:
-Avózinha!...ainda dorme??
-Não, meu filho!... Estou já a levantar. Queres uma torradinha?
Vladimir, que se habituara à pergunta, descia as escadas de acesso à rua enquanto o seu sorriso nervoso e expressivo negava a oferta, duma forma sempre carinhosa.

Mas nessa manhã, a voz de Vladimir não se ouvia como nas manhãs anteriores. Vladimir permanecia prostrado na mesma posição da noite anterior.
Joel não teve tempo para pensar como começar aquela manhã, sempre animada pelo amigo. Nem tão pouco sabia se a senhoria estava já acordada ou mesmo levantada. Olhou a cama do Vladimir de soslaio, e dirigiu-se à casa de banho. O banho foi à pressa, acreditando que a todo o momento uma batida apressada na porta casa de banho denunciasse o atraso nada habitual de Vladimir.
Hesitou antes de sair da casa de banho que integrava o enorme quarto e esforçou-se por não olhar para Vladimir. Temia que aquilo em que estava a pensar pudesse estar a acontecer.
Dirigiu-se até à sua cama e dali observou a do seu camarada. Dali via-o ainda de costas, tal como o encontrara no início daquela madrugada ao deitar-se.
Aproximou-.se.
A primeira reacção foi olhar a cara de Vladimir, que sem esboçar qualquer contracção, mais parecia a de um morto. Pressentiu a ausência de respiração do amigo.
Chamou a senhoria que em jeito de sufoco antecipou a confirmação do óbito de Vladimir.
Este permanecia enrolado sobre si mesmo. Os cobertores cobriam-no até metade da cara como se alguém lhe tivesse composto o sono. Sobre a mesa de cabeceira, estava um frasco de comprimidos vazio que Joel nunca soube de que teor.
A ambulância chegou, e Vladimir foi transportado para o hospital para as formalidades de confirmação do óbito.
Joel, mudou de casa, terminou os seus estudos. De Karl Marx e Lenine, passou a interessar-se mais por Durkheim e Max Weber. Interessou-se por J. Piaget e até Coménio como forma de se preparar para o relacionamento com a juventude que iria ensinar.
Fortaleceu a sua visão socializante da vida. Integrou-se no espaço destinado aos agnósticos, na política na família e até no amor.Tivera um amigo afinal e não estivera preparado para o aceitar.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

É DIFÍCIL SER POETA


E o escritor acordou a meio de uma noite.
De início debateu-se com o mistério da insónia.
Depois tentou brincar com ela e interrogou-se se poderia continuar a ser escritor, desaproveitando as condições de silêncio e meditação que a noite poderia proporcionar-lhe e que ele não aproveitava por não se sentir detentor de todas as faculdades, perante o atroz silêncio.
O seu corpo manteve-se amovível ao primeiro reconhecimento de inércia do espírito debaixo dos cobertores e nem sequer se atrevia a ajeitar o lençol, que por alguma razão se desenquadrara do conjunto da roupa que o cobria.
Consegue agora distinguir os cantos do quarto envoltos em penumbra que já considera poética e resolveu colocar-se de costas, corpo esticado, observando o tecto e os contrastes de luz quase pérola, tentando ouvir o silêncio.
Poderia levantar-se agora. Ir até ao escritório e escrever algo de absolutamente estranho ou mesmo encantador ou romântico. A escolha seria de certo difícil.