sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A «PEQUENA» HISTÓRIA DA NUDEZ


O bairro ficava fora das portas da cidade, como todos os bairros da cidade daquele tempo.
No seu espaço imaginavam-se uma espécie de segredos donde emanavam mistérios do centro até à sua fronteira.
Os gaiatos viviam na extremidade das histórias e segredos por contar.
Naquele bairro, indistintamente surgiam poderes mistos que todos respeitavam, e que identificavam conforme a fé, medo ou dúvida, coisas típicas dos segredos e das histórias de amedrontar e encantar .
A cidade era diferente: tinha uma muralha que a circundava o que acostumava os moradores do bairro a trajar as melhores roupas para lá entrar .
Por isso o bairro tinha pontos estratégicos de defesa. Por lá se vivia, por lá se ficava.
O bairro tinha barreiras invisíveis para quem vivia na cidade, apenas conhecidas pelos que lá se fixaram desde o início do século, vindos dos montes espalhados pela planície.
Barreiras também conhecidas pelos que lá pernoitavam por vezes: privilégio de malteses, ciganos, saltimbancos e até tendeiros, que frequentavam sazonalmente as feiras de muitos santos e outras de gado, no imenso rossio fronteiriço ao casario e quase sempre verdejante.
Um dia, até um «galego», lá se instalou, beirão do interior, que vindo com a família para a jorna da «aceifa» por lá ficou, numa casa de uma divisão só, por trás de um muro alto.
Havia também uma velha que fazia «cozeduras» para males que se dizia não terem cura.
Um lavrador mantinha uma casa com grades de ferro nas janelas, quase sempre fechada, até que em dias de feira a abria para ali permanecer encafuado com o cheiro a mofo que se sentia ao passar por perto.
O do tribunal, oficial de diligências, homem vestido sempre de preto, distinguia-se pelo seu cargo e severidade de expressão. Alguém que ele cumprimentasse à sua passagem era pessoa de estatuto diferente.
O Roque das vacas, onde de manhã cedo ou pela tarde, acorria a pequenada com cafeteiras ou panelas de alumínio para o leite fresco; o hortelão do beco, onde havia sempre temperos e hortaliças frescas a qualquer hora; a taberna do Germano; o sapateiro Ornelas; o sol a pique e as regas matinais das ruas poeirentas com a mangueira da câmara.
Os outros homens e as outras mulheres fixavam-se nos vários mesteres e na lida da casa, respectivamente, e eram esses os pais dos gaiatos daquele bairro.

Os gaiatos do bairro, regressavam da escola abençoados pelo santo padroeiro e pela côdea acompanhada do queijo açoriano, que os padres distribuíam depois do terço das 17horas e tanta ave-maria
Assim em grupos, mostravam-se folgazões e destemidos, em jornadas de muito pó e desalinho do bibe de chita, com a lição bem sabida e a boca cheia, a caminho de casa.
A tarefa de despirem o bibe, descalçar as botas cardadas e correrem descalços para o rossio, entre vacas, perus, galinhas e patos que pastavam e espenicavam, coincidia com sorriso que encarnava o espírito da fantasia.
A bola de trapo fazia o resto, até quase ao dispor do sol sobre a terra, para os lados do acampamento cigano ainda nos limites do bairro, junto ao ribeiro.
Quase não havia tempo de completar o resultado de golos combinado previamente (8 golos para o vencedor com mudança de campo ao intervalo de 4).
A mancha cor de fogo que prenunciava a oeste do final do dia, parecia não querer deixar acabar o jogo e os corpos estafavam-se numa correria que nem um pontapé num calhau mais saliente interrompia.
Sem que a mansidão do calor que a noite anunciava deixasse de ser cúmplice no suavizar do arrefecimento dos corpos suados e surdos, os gaiatos, começavam a ouvir ao longe os primeiros gritos das mães para o jantar. Era um ritual que se repetia diariamente, quase sempre sem acolhimento ao primeiro clamor.
Às vezes, uma espécie de desânimo se apoderava dos gaiatos por não poderem cumprir o resultado combinado. O recurso aos «penaltys», iria arrumar a questão e por fim à disputa sempre levada a sério, enquanto se ouvia ao longe o cântico árabe, vindo de cada voz feminina em forma de choro, lamento ou chamamento maternal.
A caminho de casa, os gaiatos discutiam as jogadas mais ou menos concretizadas, ainda entre sons das malhas de ferro que se ouviam acertar nos chitos de pau junto à taberna.
Os gaiatos faziam ainda uma paragem para ver as habilidades dos homens e ensaiavam gestos de lançamento, para quando um dia pudessem arremessar a malha àquela distância.
-Vai já lavar os pés, para ires jantar, porque o teu pai já está na mesa!...-Diriam as mães em uníssono se todas as casas se dispusessem em beco. Mas todas eram abertas ao rossio.

A refeição do jantar, em algumas casas do bairro mais interior, era ainda enfeitiçada pela luz do candeeiro a petróleo, que envolvia numa espécie de meditação concentrada no silêncio amarelado mas severo que aguardava a voz do pai.
Todos os gaiatos do bairro tinham irmãos, quase sempre mais pequenos. Um dia seriam rapazes e depois homens. Mas enquanto gaiatos, estavam sempre prontos para irem a qualquer momento à padaria e mercearia da D. Cesaltina, à taberna do Sr.Germano, ou à drogaria do Sr. Florêncio, fazer pequenos avios para «assentar».
Fiado era o código que os comerciantes do bairro , mais gostavam de ouvir pronunciar. «Judeus» seria a designação que em surdina, mereciam por parte dos pais dos gaiatos do bairro.
Mas o meio kilo de açúcar, que haveria de dar sabor ao café de chocolateira com leite, do dia seguinte, acompanharia em jeito de esquecimento, as fatias douradas que muito cedo uma mãe fritava ao som do acordar da família.


As noites de estio naquele bairro tinham pouca luz, mas tudo se adivinhava na penumbra do casario baixo ao jeito dos montes .
Havia na rua ao serão, lugares para os gaiatos à esquina da casa do sapateiro, sentados em posição fetal, apertando os joelhos contra a barriga, quando gracejavam docemente sobre a menina das tranças que vivia na rua das Flores.
Era a Isabelinha da trança de oiro, imaculada como a Nossa Senhora, e por isso intocável, que fazia corar os gaiatos a cada passagem sua, limpa e perfumada.
Um olhar dela deixava-os sem dormir, querendo mais, cada um deles, que tal emoção jamais viesse a acontecer.

Valia-lhes o Quitote cigano, que desprovido de amores, incitava os gaiatos como ele, ao conto de anedotas do Bocage noite fora, até que da Sé se ouvissem as 11 badaladas. Ao mesmo tempo, as telefonias punham fim às novelas radiofónicas, entretenimento das mães dos gaiatos do bairro, que por dentro de casa, de janelas escancaradas e de luz apagada, sentiam a brisa do sonho que os cortinados de tecido barato e semi-transparente lhes levava em segredo, naquela noite amena. Os pais dos gaiatos aguardavam o dia seguinte, sentados no poial das portas ou em cavaqueira com outros homens que os gaiatos não entendiam.

O Quitote regressava à fronteira do espaço da fantasia, ali junto ao ribeiro por onde era visto junto à tenda albardada, como é do nomadismo, onde o esperava uma fogueira rodeada de sombras.
Quando os gaiatos se encaminhavam para as suas casas, de onde mais um grito confirmava o seu regresso para os sonhos que a noite traria, o bairro começava a cobrir-se de neblina, aconchegando a coragem daquela gente, num casulo de esperança, ali às portas da cidade amuralhada

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

SABER OU SENTIR


Procuro um lugar, pequenino
Onde me veja e eu a ela
Na esteira do sonho que me acorda
Em cada visão de natureza

Vejo outros para além dela
Agora que a sinto em meu redor
Sinto um aperto de dor
Anseio pela maré que transforme
O saber no sentir de amor

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

NUDEZ


«Sob o manto diáfano da fantasia
a nudez forte da Verdade»
Eça de Queiroz

Não gosto particularmente de usar frases feitas.
Gosto outrossim de destapar constantemente o manto diáfano da fantasia, por sentir que sob ela se esconde o que quase nunca queremos sentir, olhar, tocar, chamando às coisas amolgadas, coisas mortas ou mesmo estagnadas pela longa efemeridade que as atravessou.
Paradoxos.
Mas ficam tão visíveis os sinais da nossa ambiguidade...
Que ideias, que desejos ou ódios, emergem dos vestígios do nosso esquecimento?
Porque insistimos em viver sem referências da nossa história?

Por mim, acredito que posso vir a acreditar em tudo o que esqueci, mal sinta o efeito da fantasia.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

TAMBÉM HAVIA MECÂNICOS QUE NÃO BEBIAM CERVEJA


A austeridade de uma lâmina que a uma velocidade vertiginosa, torneava a peça de ferro, a várias velocidades, até que fosse possível colocá-la na engrenagem, moldava a atenção costumeira do artesão.
A arte brotava a olho, por tentativas e sem pressas, sempre em constante expectativa, desde que o torneamento cillíndrico, triangular ou hexagonal, permitisse um rigoroso desenho técnico, que satisfizesse as mais elaboradas exigências mecânicas daquele motor aparentemente sem concerto.
Desde o desarme peça por peça do motor, à sua reposição na carroçaria já corroída, decorria um tempo de paixão entre o homem e a sua obra. Diria até de amor.
O desperdício limpava o óleo sempre presente nas mãos, motivador, até que a sujidade do macaco fosse denunciando ao longo do dia, a lenta agilidade do mestre, que no entusiasmo e entre sopros de alguma fuligem e cinza de cigarro, continuava com os olhos na sua criação.
Era vê-lo, momentos antes de accionar a chave de arranque do motor, agora devidamente afunilado no esqueleto de chapa, esboçar um sorriso maroto, cigarro sempre na boca, cúmplice de momentos de contagiante concentração.
Contornava o carro depois de pronto, entrava e saía , sorrindo, «ía fazer uma mija» como dizia, voltava agarrado ao desperdício insinuando limpar as mãos já negras mas sem óleo. Reflectia sobre o que se seguiria.
O cigarro na boca, com a cinza a desmaiar-se agora com mais pressa, o nervosismo de sempre depois da obra acabada, o tal sorriso que não desarmava, o silêncio do patrão e dos aprendizes e o meu, eram o sinónimo de algo que ia acontecer, num espaço de poucas conversas, chapas retorcidas, ferros de todos os tipos, estendidos, inertes, engolidos pela vegetação que cercava o barracão a que se chamava oficina.
O patrão de mãos atrás das costas passeava-se nervosamente, com passos vagarosos, mais desajeitados mas persistentes, entre o renault 4L agora pronto, e o seu espaço atravancado entre metais e pó, a que chamava escritório. Era ali que sentenciava semanalmente em jeito de «mea culpa», o mísero salário a atribuir a cada um dos seus operários sem ideologia, que atendia à vez.
O Manuel que começara a aprender o ofício com o meu pai, quando eu frequentava a escola primária, ali bem perto, esperava que eu depois da escola passasse por lá, para me confrontar com os segredos daquele espaço negro e de cheiros intensos, que eu aprendi a conhecer a pouco e pouco. Rara era a vez que eu não saía dali com as mãos ou o nariz mascarrados. Mas eu gostava mesmo era de dar à manivela na forja, quando o carvão mineral ardia e libertava as fagulhas que diziam estar a tornar o ferro mais mole e incandescente.
O Chico era mais novo que o Manuel e passou muito tempo a «arrumar a ferramenta», até que arranjasse jeito para o ofício.
O meu pai, estava agora em condições para pôr à prova o Renault 4l..
O Manuel e o Chico apressaram-se a ir ao escritório chamar o Sr. Fernando. Este, possuído de uma ansiedade silenciosa, contrariamente ao que era habitual, surgia de rompante por detrás das teias da aranha.
Fazia-se um cerco ao carro que de «capot» aberto, começaria intencionalmente a trabalhar ao segundo movimento na chave da ignição. Era o meu pai a criar o medo onde ele não existia.
O Manuel, mais homenzinho, deixava escapar uma risada mais estridente, o Chico ficava muito sério e o Sr. Fernando virava as costas, a caminho do seu recanto, como se o telefone o chamasse, anunciando uma outra obra.
Os ouvidos apuravam-se, na procura de um registo diferente no motor do velho carro. Sucediam-se meia dúzia de acelerações progressivamente mais fortes. O meu pai saía, deixando-o a trabalhar e de chave de fendas em punho vinha afinar o «relatim».
Afastava-me do acontecimento com um : -Chega para lá rapaz!...
Afastava-se ligeiramente, ele também, auscultando depois, a uma distância mecânica o som do motor, único interveniente vivo e dinâmico, num espaço de cumplicidades que eu ainda não entendia.
-Parece um relógio!...dizia o meu pai, sorrindo, enquanto reparando que eu ainda por ali andava, me mandava ir para casa, ter com a minha mãe, não precisasse ela que eu fosse fazer algum «mandado».
-Vai lá paposseco!...vai lá para casa…reforçava o Sr. Fernando.
Metia-me pela azinhaga que dava acesso ao bairro onde vivíamos e no percurso, por onde pontapeava com jeito de futebolista uma ou outra pedra, encontrava uma explicação curiosa: Eu não mais perguntaria ao meu pai se podia com a espada do D. Afonso Henriques.
Evitaria assim a resposta costumeira:- Não sejas parvo rapaz!...Mas quem é que te meteu essa história na cabeça?...
Ainda hoje acredito que ele poderia ter pegado nessa espada.

sábado, 8 de setembro de 2007

MALTA!..MUDAMOS DE VIDA?


Li algures algo como: «Às vezes, a literatura não muda mesmo as nossas vidas. Não é?».
Continuei a ler e reler aquilo, e a ficar incomodado.
Desprendidamente, depressa me preparei nesta tarde, para me atirar a alguém que estivesse a sacrificar-se daquela maneira, insinuando que a literatura serve para mudar a vida das pessoas, assim….
Ou seja, preparei-me fazendo algum esforço intelectual.
Tal foi a pressão que senti nestes anónimos, (autores do blog onde tudo se passa) e reactivos escrevedores equiparados a pessoas que vivem a escrita de forma especial (cúmplice), que fiquei preocupado.
Direi mesmo que senti que vivem a escrita com saciedade, quiçá por não terem encontrado ainda o espaço da sua individualidade: «Às vezes, a literatura não muda mesmo as nossas vidas. Não é?»
Arre!!...São perguntas que se façam??...

Visto isto, estou assim preparado para dizer que se por um lado me aborrece quem escreve pensando que se pode inibir por fazê-lo, como se se apodera de mim uma espécie de temor pelo facto de sentir que esses temerários escritores têm capacidades que eu não tenho, dificultando-me a sua compreensão. E o que é mais grave é que o dizem duma forma enigmática, quando têm tanto espaço para o fazer de forma directa.
Eu teria dito: Como podem vocês acreditar que poderão algum dia, mesmo axiomaticamente, perceber o que é isto de escrever?
A sério que o faria, se estivesse com preocupações de ordem académica, financeiras, sexuais ou mesmo metafísicas.
Irrita-me muito que as pessoas se distanciem das outras pessoas, utilizando as palavras, salvo quando patologias psíquicas os remetem para o espaço do isolamento depressivo, ou quando alguém lhes diz que a terapia para esses males se encontra na subversão do medo, quando a cura estaria no encontro com o dito.
Claro que assim, a literatura não poderá mudar as nossas vidas.

domingo, 2 de setembro de 2007

O INFINITO É JÁ ALI...


Há quem percepcione a finitude das coisas e as sujeite a um processo de desgaste excessivamente racional, com repercussões por vezes graves na sua saúde mental e física. Por isso se fala de férias…
Por outro lado há quem converta essa sensação de afunilamento das ideias e efeitos colaterais, apenas, numa reconciliação com a normalidade. É o baixar os braços…
O espaço surge-nos muitas vezes inclinado ou oblíquo, limitando ainda mais a nossa acção, sobretudo quando temos da realidade política, económica, social e religiosa, uma visão rectilínea, conformista e pouco reflectida.
Nesses espaços, muitos de nós aguçamos quotidianamente as garras de predadores irracionais, e caminhamos para o abismo, onde nos aguarda a força das marés, que exercerão o seu poder selectivo.
Proponho neste regresso do espaço das boas vontades por onde andámos, o retomar do caminho da nossa existência/consciência.
Iniciemos pois de novo, mas agora a partir do ponto em que ângulo se fecha, uma nova procura: conscientes, menos vesgos, menos obtusos, menos enviesados.
Mais cultos, mais presentes.