sexta-feira, 14 de setembro de 2007

TAMBÉM HAVIA MECÂNICOS QUE NÃO BEBIAM CERVEJA


A austeridade de uma lâmina que a uma velocidade vertiginosa, torneava a peça de ferro, a várias velocidades, até que fosse possível colocá-la na engrenagem, moldava a atenção costumeira do artesão.
A arte brotava a olho, por tentativas e sem pressas, sempre em constante expectativa, desde que o torneamento cillíndrico, triangular ou hexagonal, permitisse um rigoroso desenho técnico, que satisfizesse as mais elaboradas exigências mecânicas daquele motor aparentemente sem concerto.
Desde o desarme peça por peça do motor, à sua reposição na carroçaria já corroída, decorria um tempo de paixão entre o homem e a sua obra. Diria até de amor.
O desperdício limpava o óleo sempre presente nas mãos, motivador, até que a sujidade do macaco fosse denunciando ao longo do dia, a lenta agilidade do mestre, que no entusiasmo e entre sopros de alguma fuligem e cinza de cigarro, continuava com os olhos na sua criação.
Era vê-lo, momentos antes de accionar a chave de arranque do motor, agora devidamente afunilado no esqueleto de chapa, esboçar um sorriso maroto, cigarro sempre na boca, cúmplice de momentos de contagiante concentração.
Contornava o carro depois de pronto, entrava e saía , sorrindo, «ía fazer uma mija» como dizia, voltava agarrado ao desperdício insinuando limpar as mãos já negras mas sem óleo. Reflectia sobre o que se seguiria.
O cigarro na boca, com a cinza a desmaiar-se agora com mais pressa, o nervosismo de sempre depois da obra acabada, o tal sorriso que não desarmava, o silêncio do patrão e dos aprendizes e o meu, eram o sinónimo de algo que ia acontecer, num espaço de poucas conversas, chapas retorcidas, ferros de todos os tipos, estendidos, inertes, engolidos pela vegetação que cercava o barracão a que se chamava oficina.
O patrão de mãos atrás das costas passeava-se nervosamente, com passos vagarosos, mais desajeitados mas persistentes, entre o renault 4L agora pronto, e o seu espaço atravancado entre metais e pó, a que chamava escritório. Era ali que sentenciava semanalmente em jeito de «mea culpa», o mísero salário a atribuir a cada um dos seus operários sem ideologia, que atendia à vez.
O Manuel que começara a aprender o ofício com o meu pai, quando eu frequentava a escola primária, ali bem perto, esperava que eu depois da escola passasse por lá, para me confrontar com os segredos daquele espaço negro e de cheiros intensos, que eu aprendi a conhecer a pouco e pouco. Rara era a vez que eu não saía dali com as mãos ou o nariz mascarrados. Mas eu gostava mesmo era de dar à manivela na forja, quando o carvão mineral ardia e libertava as fagulhas que diziam estar a tornar o ferro mais mole e incandescente.
O Chico era mais novo que o Manuel e passou muito tempo a «arrumar a ferramenta», até que arranjasse jeito para o ofício.
O meu pai, estava agora em condições para pôr à prova o Renault 4l..
O Manuel e o Chico apressaram-se a ir ao escritório chamar o Sr. Fernando. Este, possuído de uma ansiedade silenciosa, contrariamente ao que era habitual, surgia de rompante por detrás das teias da aranha.
Fazia-se um cerco ao carro que de «capot» aberto, começaria intencionalmente a trabalhar ao segundo movimento na chave da ignição. Era o meu pai a criar o medo onde ele não existia.
O Manuel, mais homenzinho, deixava escapar uma risada mais estridente, o Chico ficava muito sério e o Sr. Fernando virava as costas, a caminho do seu recanto, como se o telefone o chamasse, anunciando uma outra obra.
Os ouvidos apuravam-se, na procura de um registo diferente no motor do velho carro. Sucediam-se meia dúzia de acelerações progressivamente mais fortes. O meu pai saía, deixando-o a trabalhar e de chave de fendas em punho vinha afinar o «relatim».
Afastava-me do acontecimento com um : -Chega para lá rapaz!...
Afastava-se ligeiramente, ele também, auscultando depois, a uma distância mecânica o som do motor, único interveniente vivo e dinâmico, num espaço de cumplicidades que eu ainda não entendia.
-Parece um relógio!...dizia o meu pai, sorrindo, enquanto reparando que eu ainda por ali andava, me mandava ir para casa, ter com a minha mãe, não precisasse ela que eu fosse fazer algum «mandado».
-Vai lá paposseco!...vai lá para casa…reforçava o Sr. Fernando.
Metia-me pela azinhaga que dava acesso ao bairro onde vivíamos e no percurso, por onde pontapeava com jeito de futebolista uma ou outra pedra, encontrava uma explicação curiosa: Eu não mais perguntaria ao meu pai se podia com a espada do D. Afonso Henriques.
Evitaria assim a resposta costumeira:- Não sejas parvo rapaz!...Mas quem é que te meteu essa história na cabeça?...
Ainda hoje acredito que ele poderia ter pegado nessa espada.

3 comentários:

platero disse...

amigo

s� para lhe dizer que gosto de o ler. N�o sei se lhe adianta alguma coisa saber isto. Mas olhe que � porreiro, tamb�m para quem l� sentir mem�rias assim t�o recamadas de fuligem e besuntadas de �leo de motor.
O ouvido dos verdadeiros mec�nicos devia ser estudado em modos cient�ficos. Afinar um motor ou um piano n�o devem ser opera�es muito diferentes!
um bom abra�o para si

Canseiroso disse...

Pena que insistam na standartização dos modelos mecânicos.
Apareça sempre.
Abraço

E. Raposo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.