quarta-feira, 17 de outubro de 2007

QUE SOM É ESTE?


O maioral das cabras não sabia o que se passava para lá do outeiro que separava o seu rebanho do resto do mundo.
Entre sargaços de cheiro intenso, floridos de branco como que para disfarçar a rudeza do seu crescimento, o amigo das cabras falava com elas, umas vezes em voz alta, acentuando a sua supremacia emitindo sons de firmeza, outras em jeito de carícia que incidia em si mesmo, deixando descair a cabeça e o som das sílabas ao mesmo tempo que as suas palavras se sumiam.
Sentado junto ao redil, encostado ao muro de pedras de xisto, o maioral ficara a saber que havia festa para os lados da aldeia, mas a sua tez castanha onde se distinguiam dois olhos enviusados de brilho denunciavam já muitas transumâncias,
Dissera-lhe o abegão que por trilhos pedregosos subira lá acima com a parelha, de carroça amanhada para o carrego do leite, que havia festa na aldeia, por decisão da comissão da cooperativa.
Era sem jeito que o artesão participava ao maioral o acontecimento festivo, sorrindo matreiramente, enquanto impava com exagero no carrego do leite para cima da carroça.
-Atão porque nã deixas aí o «ajuda» com as cabras e nã vens à aldeia com a gente!?...
A modos que vêem aí uns cantadores de Lisboa!...
O maioral habituara-se ao coaxar vindo do lado do ribeiro em noites de lua cheia. Isso sim, era-lhe familiar, como o vento. E embora as rãs o visitassem sempre que era noite, ele via sempre em cada dia a esperança do som da noite seguinte, que aguardava como se aguarda uma voz entre o silêncio das coisas imóveis e sombrias que ele sabia serem arvores de cortiça e bolota, que sabia tantas coisas trazerem-lhe…
Imaginava nas arvores majestosas de grande copa, uma espécie de homens que o visitavam em surdina, enquanto as suas cabras dormiam no redil circular de muralha de pedras de xisto, alguns metros abaixo da sua choupana coberta de colmo e outros ramos.

O seu tempo esgotava-se assim do dia para a noite, em experiências de maneio do gado até ao repouso das histórias de homens que falavam da vida que ele nunca quereria ter.
Não iria à aldeia.

À porta da cabana, o maioral aguardava ansioso a descida da parelha e do antigo feitor, que levaria o leite até ao monte. O cajado, os safões e a manta lobeira farão o seu aconchego e companhia até ao despertar da aurora.
Os homens que o visitarão nessa noite trazem-lhe histórias de guerras e outras de traição, de amores de mulheres que ele nunca vira, de outros homens que nas cidades falavam de coisas nunca vistas e ele, na penumbra que tão bem conhece, sorrirá sem que ninguém se aperceba, porque de menino outrora, se recorda não ter tido nem o calçado dos dias de feira, quanto mais o sorriso.
Será a sua fantasia.
Mas só, sorrirá, por lembranças que deixou passar incólume, e que ainda hoje, sobretudo à noite entre giestas recordará inocentemente como se de amor se tratasse.
As árvores cercarão o homem só, no seu compromisso cadente com a natureza, num pacto irresistível de isolamento, de companhia com o espaço onde uma espécie de urros nocturnos se assemelharão a notícias trazidas pelo vento, notícias sobre homens, que o poeta evocará num tablado da aldeia entre acordes duma guitarra.
Esses sons não chegarão até si. Apenas o clarão furará o breu da noite lá longe, que ele olhará ameaçado e distante.
A choupana ficaria deserta nessa noite de convites e lembranças. Dormirá no giestal, onde se sentirá seguro da existência do ar que o ar dá.


Na aldeia noite fora, o trovador cantará a sina do pastor, pedindo vida e alegrias. Ecoarão ainda gritos de revolta de amor e até da revolução, enquanto o maioral, envolto na sua solidão, estranhará o ajuntamento que para lá do outeiro os homens brindam, esquecidos de si, e da sua estimação.
Ouve-se sumido, um grilar vindo da terra pouco revolta. O tilintar de um ou outro chocalho. Sente-se o perfume dos malmequeres que inspiram a um sono atento.
Mas o poeta das cercanias das palavras que ditam as cidades, vive a clemência do rigor das coisas justas. Inventa a justiça como a bravura no seio da natureza.

9 comentários:

E. Raposo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Canseiroso disse...

Os trovadores cantam sempre o desconhecido, Inarq.Repetidamente.
O que se conhece vive-se,até ao fim de todas as mudanças, de todas as horas.
Até a rotina é dinâmica...se concordares claro.

E. Raposo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
utopia-x-7 disse...

Poesia! Poema em prosa! Melodia através do verbo! Versos da Alma!
Cântico amoroso nada banal! Maravilhas que o Homem pode(re)criar!
Enriqueces fortemente este suporte, canseiroso!
Um Beijo Grande

Ad astra disse...

Este texto está absolutamente...completamente...
Vou ler de novo.

E, canseiroso amigo, porque blogues andarás tu a ver estas coisas de "lobys"?

epá, e eu não descubro nada destas coisas interessantes :S

Canseiroso disse...

Estas coisas dos lobbys são franjas de ditaduras.É melhor não te meteres nisso.
Ainda bem que gostaste do texto da cabrinha... :)
Bjs

Ad astra disse...

amigo canseiroso,depois do teu post e das coisas que me mostrou uma nossa amga comum,vou mesmo aceitar o teu conselho e não me meter nestes lobbys estranhos,muito pouco democráticos, vou ficar-me pelo meu cantinho sim senhor.
Gostei mesmo da cabrinha e do pastor.
Estes teus textos bucólicos tem cor e cheiro.

bjs (aqui pode) e afinal disseram-me que... beijar é saudável :D

Canseiroso disse...

Então se descobriste a amiga comum, retiro o que disse, mesmo bucólico, mesmo aparentemente ingénuo...
E para que não faças confusões, continua a entrar nos lobbys estranhos...porque quem lá não é bem aceite sou eu, por razões inerentes à monocasta que esses lobbys instituem.Esquecem-se da universalidade do homem,, visto na bidimensionalidade das suas capacidades.Por isso combato o sectarismo, não por questões de gostos pessoais, mas pela dimensão redutora do seu efeito.
Quanto aos bjs, aceito, acreditando que são saudáveis...

Ad astra disse...

Não vou lá não senhor, e se o fiz foi por me terem alertado para o plágio cometido sobre um texto meu,o que aliás não é caso único.

Eu cá não quero confusões, prefiro a serenidade das paisagens bucólicas e das leituras serenas

bjnho jurando que é saudável e amigo