terça-feira, 30 de outubro de 2007

PESSOAS


A noite era já instalada e Eugénio começava a insinuar a sua ausência de lucidez, mal sentia o pai chegar do trabalho.
Até aí, no seu silêncio e junto de sua mãe que o olhava continuamente com ternura, prostrava-se consciente dos seus medos até, no que de mais terrível pudesse vir a acontecer-lhe, andava pelos 12 anos de idade.
O Eugénio estava a ser um rapaz grande e curvado para a idade. Os lábios eram excessivamente carnudos, e o inferior descaía embalado pela inércia de todo o corpo.
-Eugénio, vai lá à Dona Vicência buscar uma quarta de sabão azul e depois passas pela drogaria e trazes esta garrafa de petróleo, mas cuidado não deixes cair.
-Tá bem!...- soava uma espécie de grunhido que a sua mãe entendia na perfeição
A expressão do Eugénio alterava-se conforme as circunstâncias. A oralidade era marcadamente inexpressiva, com uma sonoridade disforme quando se revelava mais inquieto com situações que ele não conseguia explicar, mas com certeza conseguia sentir.
Sua mãe conseguia perceber-lhe todas as mudanças de humor e por isso mesmo mantinha sempre para com ele uma serenidade e compreensão que procurava atenuar os momentos de maior dúvida, sobre a veracidade daquilo que seria uma oligofrenia ligeira.
O pai, sucateiro distante o dia todo, era recebido sacramentalmente pelo filho que se agarrava ao seu braço de ferro, como se de um tronco precisasse para se defender da avalanche que o remetia para uma foz de medo e insegurança.
-Agarra lá aqui o rapaz!...- e era a ausência pensada da lucidez que se instalava no semblante do Eugénio, vivida num ambiente hostil.
Ambiente de Deus, Pátria e Família, que constituíam a trilogia estranha, de crescimento das espécies seleccionadas à nascença, pela raça e pela crença no regime paternalista, idealizado à imagem do ditador.
Tal como era próprio do Alentejo corporativista e conservador nos usos e costumes. As famílias nele vividas, assim eram paridas, sem fé, mas com grande fervor na aceitação do sofrimento.

Hoje o Eugénio não tem pai nem mãe, nem sabe se houve revolução.
O seu corpo sofreu alterações, mas dizem que continua com uma oligofrenia ligeira, que lhe permite escrever cartas a mulheres de ninguém.
Essas mulheres encontram nos anúncios do jornal regional, que o Eugénio pede que se publiquem mediante pagamento, uma esperança de retorno das suas vidas.
O Eugénio por outro lado não quer o retorno. Procura avançar no caminho das estrelas de que continua a não falar, mas que se sente estarem no seu desejo de ser um dia alguém ainda reconhecidamente imputável nos seus actos de procura de amor.
Não evoluiu para o mundo virtual das relações escondidas. Procura prostitutas e drogados como forma de se fazer entender no seio da normalidade cada vez mais perto do seu entendimento e que ele reconhece estar mais perto do entendimento dos outros.
Vive de uma pensão de sobrevivência e do apoio de instituições de caridade.
Aprendeu a mentir, esboça palavras de solidariedade procurando evidenciar a sua má sorte e fá-lo com tanta certeza de não falhar nos interlocutores que só é ouvido por esses. Por aqueles que o ouvem.
O Eugénio apaixonou-se.
Em sua casa alberga o seu grande amor de quando em vez. Aceita também o namorado do seu grande amor. Alguns imigrantes desprovidos de meios também por lá dormem e festejam a desarmonia dos incautos.
Alguém dirá que desajeitadamente se drogam e embebedam, acordam vizinhos e estilhaçam vidros na folia que ninguém, nem polícias se atrevem a perturbar.
O Eugénio e os seus companheiros nunca saberão que se ama e odeia tanto no silêncio dos inocentes. Os seus olhos assustados quando encontram os dos outros, quase que confessam os seus desajustes sociais, mas o Eugénio não deixa.
É ele que define as estratégias. É ele que abastece a sua casa para os festins com os seus amigos. O tempo corrói cada tempo que vivem, porque esperam sempre o tempo que há-de vir.
O Eugénio já não escreve cartas de amor. Prefere que lhe chamem mendigo e acompanha o seu amor por toda a cidade.
Um dia alguém se enganou e encaminharam-no compulsivamente para um hospital psiquiátrico. O psiquiatra absolveu-o de tal demência.
As noites para o Eugénio já são iguais aos dias. Acha que atingiu a plenitude da sua lucidez.

8 comentários:

utopia-x-7 disse...

Se me permites, aproveito para fazer minhas as palavras que endereçaste ao Ena Pá, e vou daqui enviar-lhe o recado:
Não desbundes e concentra-te no essencial.
Disfruta deste belo texto. Sem dúvida criado por um homem Sage.
E a Sageza cada vez é mais rara. Pelo que não podemos dar-nos ao luxo de a desperdiçar perdendo tempo com o acessório.
Porque o acessório, é apenas o disfarce do vácuo estéril.

Anônimo disse...

Aqui tocaste bem, e fundo. Obrigado pela ilustração, convem dizer que esse trabalho está no espolio da Camara Municipal de Évora. Abração.

Ena Pá! disse...

Utopia, canseiroso,
parafraseando o nosso Aleixo:
não sou nem bem nem mal educado/
mas apenas o fruto, do meio onde fui concebido(blogaria)
Não rima mas é verdade.
Mas têm razão, o que interessa mesmo é o privilégio da fruição deste post. E há nele humanismo tamanho, que me faz voltar a acreditar que o Homem ainda tem futuro neste planeta.
Um Abraço fraterno

Ena Pá! disse...

Só agora reparo que tens o amigo "cabeça" com endereço no teu blogue.
Ora, compadre, podias ter-me dado uma pista! Agora parece-me que tenho de pedir desculpas ao homem pela minha rudeza e desconfiança...

E. Raposo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ena Pá! disse...

a in@rq, nem c'a gente a fazer um desenho vai lá!...

E. Raposo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ena Pá! disse...

Não te preocupes. Pensa só que todas as morenas um dia serão loiras também!...
Eu também fiquei assim qdo fui rejeitado por uma loiraça tipo, Marilyn Monroe. Tás a ver...
Andei no limbo durante mto tempo e só conseguia encetar conversa da treta.
Olha, acontece aos melhores! Não desanimes.
Um beijo para ti