sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

NATAL OU BARRANCOS?



A estrada que obliquamente se direcciona de Évora até lá, em jeito sudeste, conduz-nos à raia de Espanha onde a língua portuguesa se confunde com o castelhano. Ali fala-se o «barranquenho».
Ouve-se música estremenha na praça onde em tempos rivalizava a colectividade dos ricos e a dos pobres. Hoje toda a gente entra nas duas. Os televisores sintonizam os canais espanhóis e todos iniciam a conversa, com um «conho» quando ela é descontraída e veemente nas suas interjeições, procurando do interlocutor, toda a atenção e participação.
Encinasola, a 8 km, terra de cumplicidades com Barrancos desde que o contrabando do café fazia o sustento dos de cá, viu os irmãos portugueses darem guarida aos resistentes da guerra civil espanhola de 1936-39 e sobretudo às suas mulheres.
Talvez por isso, do silêncio se faça história, passada em palheiros ou celeiros onde os cereais se misturavam muitas vezes com outros sustentos.
Mas os povos sempre criaram a sua barca, perante as adversidades de qualquer naufrágio.
Por isso as festas de Agosto têm touros de morte com toureiros espanhóis, que por muito mal que toureiem, são sempre ovacionados até ao delírio.
As bailarinas sevilhanas animam esse mês da reconciliação que é anual. Bebe-se quase até à exaustão e comem-se os touros mortos na praça.

È nesta praça que me encontro nesta noite de Natal.

Entro nas colectividades à procura do som que ecoa nessa mesma praça.
O som é agradável e estranho. Instrumentos suavizam as vozes quase como que, a não querer dizerem o que dizem, mas consigo perceber que se canta sempre o amor…em castelhano, fundido com o português. Que ironia…-penso eu-
«Sam…bonba…Sam…bombita…te quiero em notche bue…na...»
As vozes em coro, combinam-se no tal delírio que leva à vermelhidão de quem se quer fazer ouvir. É uma espécie de suplica, de penitência, sabe-se lá porquê…
Procuro junto dos mais velhos saber do que tratam as canções. A resposta é dada num castelhano mais acentuado ainda, quase imperceptível e sente-se que há alguma comoção no que se diz e mais ainda, no que se sente.
Contento-me com a resposta e tento acompanhar o som e as vozes, naquele espaço de fogo purificador da história das gentes de Barrancos.

É meia-noite e a Igreja que também faz parte desta praça, franqueia as portas para a missa do galo. Está repleta de gente silenciosa, mas sente-se que os milagres acontecem cá fora logo que a missa acabe.
É ali junto do crepitar da enorme lareira que as vozes se levantarão de novo, madrugada fora, num eco dirigido aos irmãos de Encinasola, que dizem, estão igualmente a partilhar o momento de todas as recordações.
Tudo me parece estranho neste Natal. O mistério adensa-se.

Dia de Natal.
Juntei-me a um grupo e dirigi-me a Encinasola.
O meu anfitrião, ido de Barrancos comigo, levou-me à taberna do António, que faz uma «morcilha» fantástica.
Não noto um único trejeito, de pronúncia portuguesa naquela gente. Temos que falar espanhol para que nos entendam. As mulheres, jovens ainda, estão ao balcão com os homens comendo «tapas» e bebendo cerveja e ainda vamos no meio dia. Saúdam-nos com «Olás» em resposta aos nossos «Buenos dias», mas não são efusivos no tratamento.
A «morcilha» e o vinho estavam óptimos disse eu para o António e sugeri que nos viéssemos.
Pensei que em Agosto próximo as coisas se recomporão com certeza, e no caminho de regresso a Barrancos, fiquei na dúvida se algo havia que recompor…

Aqueles 8 km até Barrancos são feitos em estrada nova. A mesma empobrece quando surge a placa que limitava a fronteira e que diz: Portugal.
São horas do almoço de Natal, já se canta de novo na praça de Barrancos, e talvez por ser manhã ouvem-se agora coros alentejanos. Junto-me a eles e afino a garganta para o muito que tenho que contar sobre este tempo que é de Natal, mas que podia ser de resistência.
O regresso a Évora seria nostálgico . Ainda sobrava um pouco de luz e tive tempo para contemplar o imenso Alqueva que da ponte que conduz a Reguengos, se observa.
Vi as vedações que cercam ainda toda aquela água, que parece acorrentada, com Barrancos ali tão perto…

2 comentários:

Anônimo disse...

E....porque não?!, o portugalito pegava na sua panelita e com muito cuidadito e devagarito (as estradas portuguesitas com muititas covitas entornam o caldito)íamos até ao outro lado combinar o super "cozido galaico-português", talvez assim as eternas lágrimas do choroso fado fossem para sempre secas. "Olé!"

Canseiroso disse...

Gostei da vertente política, associada à vertiginosa vontade que todos temos de ter algo mais, que calditos, neste país de açordas choradas ao som do fado dos Hilários, que continuam a adormecer-nos.«Olé!»