sábado, 14 de agosto de 2010
TEXTO LONGO...
As novenas de Maria em Maio decorriam na igreja de S.Sebastião todos os finais de tarde. Acorriam a elas as meninas do bairro, de trança, de franjinha, ou muito bem penteadas. Vestidas de chita ou de algo parecido com seda, levavam nos olhos a dúvida da oração reforçada pelos olhares cúmplices dos seus pacíficos perseguidores.
Os rapazes acotovelavam-se atrás delas, a caminho da igreja, envergonhados das cicatrizes nos joelhos, ajeitando as alças que seguravam os calções, que mesmo assim deixavam sair para fora as franjas das camisolas desalinhadas .
Também eles ingenuamente matreiros, tentavam adivinhar de que lado se iriam posicionar dentro da igreja, de modo a melhor desprenderem um sorriso para a Isabelinha, a Josefa, a Manelinha ou a Inácia. Era uma repartição de afectos feita antecipadamente, por mor das opções ou paixões que cada um dizia alimentar.
O inevitável terço iria começar e a novena seria preenchida pela ladainha das mães, tias, avós, aparentemente desatentos às respeitosas mas insinuadoras aspirações a namoro por parte da miudagem. O cheiro a incenso e um resto de primavera deixada lá fora, misturavam-se no interior da igreja e acompanhava as risadas do pessoal de soquetes, repreendido de imediato após a entrada do padre para ao início das orações.
-A Isabelinha olhou para trás!?...Estava a olhar para ti…-exclamou o gordo Eduardo de olhos muito abertos, armado em alcoviteiro, empurrando e avisando histericamente o Adelino.
Os quatro rapazes entreolharam-se agora mais sérios e apreensivos, procurando entre si e em silêncio, atributos seus que justificassem tal acto e atenção da rapariga da trança. Baralhavam-se as atenções e os afectos e a pressa de atribuir a mais bela ao mais comedido, mas reconhecidamente adaptado a tal beleza, era evidente.Tal era o sofrimento perante tanta beleza…
Em lugar dos sorrisos matreiros, algo desinquietos e atrevidos,os rapazes fixaram-se quedos e mudos, como que apreensivos com a atitude da menina da rua das Rosas nº 4, desconhecendo, embora desconfiando, a quem o sorriso aberto, loiro, assustadoramente angelical seria dirigido.
O gordo entendendo não fazer parte daquela decisão, saiu da Igreja, pé ante pé, ía a ladainha ainda a meio. Cá fora o cheiro das buganvílias embriagava com o seu perfume, que se suponha vir do céu naquela altura do ano e sobretudo quando a cor de fogo surgia para o lado do poente.
Os outros rapazes ainda perceberam o ar trocista e preocupado das raparigas, que mesmo de costas se aperceberam da primeira baixa entre os seus perseguidores, admiradores, proponentes a namorados.
Adivinhava-se nos olhos dos persistentes mas silenciosos conquistadores o falhanço da estratégia naquele fim de tarde: –Porque se rira assim a Isabelinha e para qual deles? Porque se retirou o Eduardo? Embora todos os outros o vissem como o menos provável candidato a qualquer das meninas, que de terço entre as mãos, continuavam nervosamente contando as bolinhas de cada Ave-Maria.
-Malta…-sussurrou o João pelo respeito que tinha ao padre Cristiano-sai um de cada vez e lá fora falamos!...
-Está bem!..-responderam quase em uníssono os restantes-
Primeiro o Adelino, depois o José Luis e finalmente o João, depois de terem ajoelhado em linha recta na direcção do altar ( e do padre Cristiano) e procedendo ao desenho da cruz de Cristo no peito,saíram.
Cá fora nem notaram que o sol se tinha posto e foi com dificuldade que perceberam onde se encontrava o Eduardo. Só o seu choro compulsivo o identificou, sentado com a cabeça entre os joelhos, no meio de ramagens de alfazema e alecrim, que decoravam um pequeno jardim, vocacionado para o perdão, integrado na Igreja de S. Sebastião.
O João rodeado pelos companheiros foi o primeiro a chegar junto do Eduardo e com um joelho no chão colocou-se ao nível do meio abraço com que confortou o amigo, ao mesmo tempo que em conjunto lhes saltou a pergunta:
-Gordo…porque é que estás a chorar?
-Eu disse que a Isabelinha estava a olhar para o Adelino e ele nem me disse nada….-o rapaz, quase parecia entrar em convulsões tal era a emoção que colocava no choro-
Rápidamente, cada um dos amigos do Eduardo encontrou uma justificação que servisse de atenuação da sua dor, enigmática, estranha e incompreensível para todos, que com semblante carregado procuraram a escadaria que na penumbra os encaminharia até à azinhaga que os conduziria ao rossio e depois a suas casas.
Ía a descida a meio, quando no cimo quase fronteiriço às escadarias se abriu vagarosamente a enorme porta da igreja de S. Sebastião, interrompendo-se assim a caminhada dos rapazes que iam abraçados ao Eduardo.
Pararam e de olhos muito abertos, em silêncio, sentiram os seus corações a bater mais depressa, ao ritmo da intensidade produzida pelo efeito da luz forte ,amarela,vinda do interior da igreja, misturada com sombras de figuras humanas mais jovens, que progressivamente espalhavam uma atmosfera de apreensão, mas serenidade e paz ao mesmo tempo, ao espaço exterior envolvente, onde o Eduardo, o Adelino , o Joaõ e o José Luis se prostravam espantados, já com as suas faces visíveis iluminadas pela luz do interior da igreja.
Surge então o que todos eles temiam: a imagem assustadoramente bela da Isabelinha, que na dianteira daquela luz, trazia um sorriso na sua direcção, como que, se de um sonho se tratasse.
A Isabelinha descendo devagar os primeiros degraus daquela escadaria, ladeada pelas amigas, dirigiu-se com a suavidade dos anjos, ao grupo de rapazes com o Eduardo no meio deles e com um sorriso que eles nunca conseguiram definir dirigiu-se ao gordo.
E com a ternura que só um anjo consegue demonstrar, acariciou-lhe a face dizendo-lhe:-Eduardo, nunca mais chores, senão nunca mais me riu para ti na Igreja…
Retira-se de seguida, deixando o rasto daquele contagiante sorriso, que por angélico, mantinha os quatro amigos sérios e quase amedrontados .Ficou ainda o seu eterno olhar, difícil de entender, ao separar-se dos rapazes que entonteceu com um agradecimento, que mais não quis dizer que:-Adeus…
Manteve-se em silêncio seguida das suas amigas.
As faces do rapazes, passados uns segundos, iluminaram-se com um franco sorriso, de novo matreiro, de novo ladino e ingenuamente audaz, ao mesmo tempo que as raparigas desciam finalmente as escadarias, cúmplices, juntas, adiando a risota que só mais ao largo do rossio deixariam ouvir.
Os mais velhos, sobretudo as mulheres, aconchegando os xailes para as noites frias de Maio, caminhavam seguindo a garotada, Tinham ficado para trás a contemplar o gesto de ternura , inédito e inesperado da pequena Isabel, e abanando as cabeças com sorrisos de censura fingida, lá levavam mais um caso para casa, dos muitos casos que em silêncio aquela comunidade experienciava, crentes quando a dor a tanto obrigava, genuínos na esperança de poder amar eternamente.
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Um comentário:
Bonito texto. Lembra os belos serões da aldeia, que deixaram de existir depois da TV nos vir embrutecer.
De qualquer modo, no meu tempo não havia rapazes gordos, ou porque não comiam muito, ou porque se mexiam muito e não havia comida de plástico.
Gostei muito da Isabelinha, ela representa toda a sagacidade e ternura de uma mulher.
Espero que tenha tido uma boas férias.
[].
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