domingo, 22 de novembro de 2009

FÁBULA


Sem ser por querer e tender
Os braços baixam e suspiram
O corpo relança-se na procura
Do espaço que os braços deixaram
A alma esconde-se e insinua
Baralha, suplica e resiste
Apela à memória da loucura
E o corpo enfraquece, persiste
Surge a voz que se sente crua
Clama por gente e ventura
Sente por tudo o que queria
Com palavras sem eco
Ternura

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ò VICENTE EXPLICA TU


As brincadeiras mediam-se pela rijeza, destreza, alguma astúcia e pé ligeiro.
A substância das coisas estava na facilidade com que se entendia imediatamente o que podia ser perdoado e aquilo que não tinha perdão.
Não existia, como hoje, a já famosa e atenuante interjeição do RAP: «Ah e tal!... E mais não sei quê…».
Era quase sempre clandestina a luta por tudo aquilo que não tinha perdão e franca a atitude de usufruto da liberdade disponível.


Daqui, extraio a esta distância, duas lições.
Parti o pião do Vicente e lembro-me de que ele só não se abraçou a mim de satisfeito com o meu acto de heroicidade, porque nesse tempo recebíamos duras lições de masculinidade.
A segunda e a mais importante tem a ver precisamente com a alegria do Vicente, que hoje poderá ser entendida «transversalmente» assim:
O Vicente ou era atrasadinho, ou tinha pais disfuncionais, ou problemas sócio-económicos, daí o seu fraco aproveitamento escolar, não estando atento nas aulas, sendo preguiçoso, pouco participativo, sem pré-requisitos, hábitos de estudo, falta de motivação, etc, etc.
Sim, porque isto de ficar a rir de cumplicidade, com quem lhe partiu o pião, é no mínimo revelador de dificuldades afectivo/cognitivas/comportamentais

Lembro-me perfeitamente do Vicente.
Era um estratega fantástico na distribuição dos cowboys, quando nos metia por atalhos na perseguição dos índios, nas nossas brincadeiras pelo bairro de terra batida.
No futebol sabia cruzar como nenhum. E eu que o diga que cabeceava com êxito, muitas vezes para a baliza, recebendo a bola milimetricamente dos seus pés.

Mesmo quando rezava por imposição, na escola dos padres que nos educavam, onde devoção só tínhamos a que nos deixavam ter, fazia-o sempre com o zelo que o acontecimento exigia, sabendo nós, que era ele que na sacristia comia as hóstias e bebia o vinho do padre Ernesto.

Sabia a tabuada de cor e explicava-nos enquanto jogávamos ao prego, que a aprendia enquanto plantava alfaces na horta com o avô, subtraindo as que colhia ao fim do dia, para acompanhar o guisado de favas que a mãe cozinhava.

Ainda a tarde era tarde, regressávamos da escola e ele atirava o bibe e a mala para o poial da porta e corria para o rossio a caminho da jogatana, enquanto os perus que por ali espenicavam, com ele gorjeavam, emitindo sons que recordo serem contagiantes de alegria.

Nem sei porque estou a dizer isto…mas foi a forma mais encorajadora que encontrei de retomar o meu espaço de meditação.