O bairro ficava fora das portas da cidade, como todos os bairros da cidade daquele tempo.
No seu espaço imaginavam-se uma espécie de segredos donde emanavam mistérios do centro até à sua fronteira.
Os gaiatos viviam na extremidade das histórias e segredos por contar.
Naquele bairro, indistintamente surgiam poderes mistos que todos respeitavam, e que identificavam conforme a fé, medo ou dúvida, coisas típicas dos segredos e das histórias de amedrontar e encantar .
A cidade era diferente: tinha uma muralha que a circundava o que acostumava os moradores do bairro a trajar as melhores roupas para lá entrar .
Por isso o bairro tinha pontos estratégicos de defesa. Por lá se vivia, por lá se ficava.
O bairro tinha barreiras invisíveis para quem vivia na cidade, apenas conhecidas pelos que lá se fixaram desde o início do século, vindos dos montes espalhados pela planície.
Barreiras também conhecidas pelos que lá pernoitavam por vezes: privilégio de malteses, ciganos, saltimbancos e até tendeiros, que frequentavam sazonalmente as feiras de muitos santos e outras de gado, no imenso rossio fronteiriço ao casario e quase sempre verdejante.
Um dia, até um «galego», lá se instalou, beirão do interior, que vindo com a família para a jorna da «aceifa» por lá ficou, numa casa de uma divisão só, por trás de um muro alto.
Havia também uma velha que fazia «cozeduras» para males que se dizia não terem cura.
Um lavrador mantinha uma casa com grades de ferro nas janelas, quase sempre fechada, até que em dias de feira a abria para ali permanecer encafuado com o cheiro a mofo que se sentia ao passar por perto.
O do tribunal, oficial de diligências, homem vestido sempre de preto, distinguia-se pelo seu cargo e severidade de expressão. Alguém que ele cumprimentasse à sua passagem era pessoa de estatuto diferente.
O Roque das vacas, onde de manhã cedo ou pela tarde, acorria a pequenada com cafeteiras ou panelas de alumínio para o leite fresco; o hortelão do beco, onde havia sempre temperos e hortaliças frescas a qualquer hora; a taberna do Germano; o sapateiro Ornelas; o sol a pique e as regas matinais das ruas poeirentas com a mangueira da câmara.
Os outros homens e as outras mulheres fixavam-se nos vários mesteres e na lida da casa, respectivamente, e eram esses os pais dos gaiatos daquele bairro.
Os gaiatos do bairro, regressavam da escola abençoados pelo santo padroeiro e pela côdea acompanhada do queijo açoriano, que os padres distribuíam depois do terço das 17horas e tanta ave-maria
Assim em grupos, mostravam-se folgazões e destemidos, em jornadas de muito pó e desalinho do bibe de chita, com a lição bem sabida e a boca cheia, a caminho de casa.
A tarefa de despirem o bibe, descalçar as botas cardadas e correrem descalços para o rossio, entre vacas, perus, galinhas e patos que pastavam e espenicavam, coincidia com sorriso que encarnava o espírito da fantasia.
A bola de trapo fazia o resto, até quase ao dispor do sol sobre a terra, para os lados do acampamento cigano ainda nos limites do bairro, junto ao ribeiro.
Quase não havia tempo de completar o resultado de golos combinado previamente (8 golos para o vencedor com mudança de campo ao intervalo de 4).
A mancha cor de fogo que prenunciava a oeste do final do dia, parecia não querer deixar acabar o jogo e os corpos estafavam-se numa correria que nem um pontapé num calhau mais saliente interrompia.
Sem que a mansidão do calor que a noite anunciava deixasse de ser cúmplice no suavizar do arrefecimento dos corpos suados e surdos, os gaiatos, começavam a ouvir ao longe os primeiros gritos das mães para o jantar. Era um ritual que se repetia diariamente, quase sempre sem acolhimento ao primeiro clamor.
Às vezes, uma espécie de desânimo se apoderava dos gaiatos por não poderem cumprir o resultado combinado. O recurso aos «penaltys», iria arrumar a questão e por fim à disputa sempre levada a sério, enquanto se ouvia ao longe o cântico árabe, vindo de cada voz feminina em forma de choro, lamento ou chamamento maternal.
A caminho de casa, os gaiatos discutiam as jogadas mais ou menos concretizadas, ainda entre sons das malhas de ferro que se ouviam acertar nos chitos de pau junto à taberna.
Os gaiatos faziam ainda uma paragem para ver as habilidades dos homens e ensaiavam gestos de lançamento, para quando um dia pudessem arremessar a malha àquela distância.
-Vai já lavar os pés, para ires jantar, porque o teu pai já está na mesa!...-Diriam as mães em uníssono se todas as casas se dispusessem em beco. Mas todas eram abertas ao rossio.
A refeição do jantar, em algumas casas do bairro mais interior, era ainda enfeitiçada pela luz do candeeiro a petróleo, que envolvia numa espécie de meditação concentrada no silêncio amarelado mas severo que aguardava a voz do pai.
Todos os gaiatos do bairro tinham irmãos, quase sempre mais pequenos. Um dia seriam rapazes e depois homens. Mas enquanto gaiatos, estavam sempre prontos para irem a qualquer momento à padaria e mercearia da D. Cesaltina, à taberna do Sr.Germano, ou à drogaria do Sr. Florêncio, fazer pequenos avios para «assentar».
Fiado era o código que os comerciantes do bairro , mais gostavam de ouvir pronunciar. «Judeus» seria a designação que em surdina, mereciam por parte dos pais dos gaiatos do bairro.
Mas o meio kilo de açúcar, que haveria de dar sabor ao café de chocolateira com leite, do dia seguinte, acompanharia em jeito de esquecimento, as fatias douradas que muito cedo uma mãe fritava ao som do acordar da família.
As noites de estio naquele bairro tinham pouca luz, mas tudo se adivinhava na penumbra do casario baixo ao jeito dos montes .
Havia na rua ao serão, lugares para os gaiatos à esquina da casa do sapateiro, sentados em posição fetal, apertando os joelhos contra a barriga, quando gracejavam docemente sobre a menina das tranças que vivia na rua das Flores.
Era a Isabelinha da trança de oiro, imaculada como a Nossa Senhora, e por isso intocável, que fazia corar os gaiatos a cada passagem sua, limpa e perfumada.
Um olhar dela deixava-os sem dormir, querendo mais, cada um deles, que tal emoção jamais viesse a acontecer.
Valia-lhes o Quitote cigano, que desprovido de amores, incitava os gaiatos como ele, ao conto de anedotas do Bocage noite fora, até que da Sé se ouvissem as 11 badaladas. Ao mesmo tempo, as telefonias punham fim às novelas radiofónicas, entretenimento das mães dos gaiatos do bairro, que por dentro de casa, de janelas escancaradas e de luz apagada, sentiam a brisa do sonho que os cortinados de tecido barato e semi-transparente lhes levava em segredo, naquela noite amena. Os pais dos gaiatos aguardavam o dia seguinte, sentados no poial das portas ou em cavaqueira com outros homens que os gaiatos não entendiam.
O Quitote regressava à fronteira do espaço da fantasia, ali junto ao ribeiro por onde era visto junto à tenda albardada, como é do nomadismo, onde o esperava uma fogueira rodeada de sombras.
Quando os gaiatos se encaminhavam para as suas casas, de onde mais um grito confirmava o seu regresso para os sonhos que a noite traria, o bairro começava a cobrir-se de neblina, aconchegando a coragem daquela gente, num casulo de esperança, ali às portas da cidade amuralhada
No seu espaço imaginavam-se uma espécie de segredos donde emanavam mistérios do centro até à sua fronteira.
Os gaiatos viviam na extremidade das histórias e segredos por contar.
Naquele bairro, indistintamente surgiam poderes mistos que todos respeitavam, e que identificavam conforme a fé, medo ou dúvida, coisas típicas dos segredos e das histórias de amedrontar e encantar .
A cidade era diferente: tinha uma muralha que a circundava o que acostumava os moradores do bairro a trajar as melhores roupas para lá entrar .
Por isso o bairro tinha pontos estratégicos de defesa. Por lá se vivia, por lá se ficava.
O bairro tinha barreiras invisíveis para quem vivia na cidade, apenas conhecidas pelos que lá se fixaram desde o início do século, vindos dos montes espalhados pela planície.
Barreiras também conhecidas pelos que lá pernoitavam por vezes: privilégio de malteses, ciganos, saltimbancos e até tendeiros, que frequentavam sazonalmente as feiras de muitos santos e outras de gado, no imenso rossio fronteiriço ao casario e quase sempre verdejante.
Um dia, até um «galego», lá se instalou, beirão do interior, que vindo com a família para a jorna da «aceifa» por lá ficou, numa casa de uma divisão só, por trás de um muro alto.
Havia também uma velha que fazia «cozeduras» para males que se dizia não terem cura.
Um lavrador mantinha uma casa com grades de ferro nas janelas, quase sempre fechada, até que em dias de feira a abria para ali permanecer encafuado com o cheiro a mofo que se sentia ao passar por perto.
O do tribunal, oficial de diligências, homem vestido sempre de preto, distinguia-se pelo seu cargo e severidade de expressão. Alguém que ele cumprimentasse à sua passagem era pessoa de estatuto diferente.
O Roque das vacas, onde de manhã cedo ou pela tarde, acorria a pequenada com cafeteiras ou panelas de alumínio para o leite fresco; o hortelão do beco, onde havia sempre temperos e hortaliças frescas a qualquer hora; a taberna do Germano; o sapateiro Ornelas; o sol a pique e as regas matinais das ruas poeirentas com a mangueira da câmara.
Os outros homens e as outras mulheres fixavam-se nos vários mesteres e na lida da casa, respectivamente, e eram esses os pais dos gaiatos daquele bairro.
Os gaiatos do bairro, regressavam da escola abençoados pelo santo padroeiro e pela côdea acompanhada do queijo açoriano, que os padres distribuíam depois do terço das 17horas e tanta ave-maria
Assim em grupos, mostravam-se folgazões e destemidos, em jornadas de muito pó e desalinho do bibe de chita, com a lição bem sabida e a boca cheia, a caminho de casa.
A tarefa de despirem o bibe, descalçar as botas cardadas e correrem descalços para o rossio, entre vacas, perus, galinhas e patos que pastavam e espenicavam, coincidia com sorriso que encarnava o espírito da fantasia.
A bola de trapo fazia o resto, até quase ao dispor do sol sobre a terra, para os lados do acampamento cigano ainda nos limites do bairro, junto ao ribeiro.
Quase não havia tempo de completar o resultado de golos combinado previamente (8 golos para o vencedor com mudança de campo ao intervalo de 4).
A mancha cor de fogo que prenunciava a oeste do final do dia, parecia não querer deixar acabar o jogo e os corpos estafavam-se numa correria que nem um pontapé num calhau mais saliente interrompia.
Sem que a mansidão do calor que a noite anunciava deixasse de ser cúmplice no suavizar do arrefecimento dos corpos suados e surdos, os gaiatos, começavam a ouvir ao longe os primeiros gritos das mães para o jantar. Era um ritual que se repetia diariamente, quase sempre sem acolhimento ao primeiro clamor.
Às vezes, uma espécie de desânimo se apoderava dos gaiatos por não poderem cumprir o resultado combinado. O recurso aos «penaltys», iria arrumar a questão e por fim à disputa sempre levada a sério, enquanto se ouvia ao longe o cântico árabe, vindo de cada voz feminina em forma de choro, lamento ou chamamento maternal.
A caminho de casa, os gaiatos discutiam as jogadas mais ou menos concretizadas, ainda entre sons das malhas de ferro que se ouviam acertar nos chitos de pau junto à taberna.
Os gaiatos faziam ainda uma paragem para ver as habilidades dos homens e ensaiavam gestos de lançamento, para quando um dia pudessem arremessar a malha àquela distância.
-Vai já lavar os pés, para ires jantar, porque o teu pai já está na mesa!...-Diriam as mães em uníssono se todas as casas se dispusessem em beco. Mas todas eram abertas ao rossio.
A refeição do jantar, em algumas casas do bairro mais interior, era ainda enfeitiçada pela luz do candeeiro a petróleo, que envolvia numa espécie de meditação concentrada no silêncio amarelado mas severo que aguardava a voz do pai.
Todos os gaiatos do bairro tinham irmãos, quase sempre mais pequenos. Um dia seriam rapazes e depois homens. Mas enquanto gaiatos, estavam sempre prontos para irem a qualquer momento à padaria e mercearia da D. Cesaltina, à taberna do Sr.Germano, ou à drogaria do Sr. Florêncio, fazer pequenos avios para «assentar».
Fiado era o código que os comerciantes do bairro , mais gostavam de ouvir pronunciar. «Judeus» seria a designação que em surdina, mereciam por parte dos pais dos gaiatos do bairro.
Mas o meio kilo de açúcar, que haveria de dar sabor ao café de chocolateira com leite, do dia seguinte, acompanharia em jeito de esquecimento, as fatias douradas que muito cedo uma mãe fritava ao som do acordar da família.
As noites de estio naquele bairro tinham pouca luz, mas tudo se adivinhava na penumbra do casario baixo ao jeito dos montes .
Havia na rua ao serão, lugares para os gaiatos à esquina da casa do sapateiro, sentados em posição fetal, apertando os joelhos contra a barriga, quando gracejavam docemente sobre a menina das tranças que vivia na rua das Flores.
Era a Isabelinha da trança de oiro, imaculada como a Nossa Senhora, e por isso intocável, que fazia corar os gaiatos a cada passagem sua, limpa e perfumada.
Um olhar dela deixava-os sem dormir, querendo mais, cada um deles, que tal emoção jamais viesse a acontecer.
Valia-lhes o Quitote cigano, que desprovido de amores, incitava os gaiatos como ele, ao conto de anedotas do Bocage noite fora, até que da Sé se ouvissem as 11 badaladas. Ao mesmo tempo, as telefonias punham fim às novelas radiofónicas, entretenimento das mães dos gaiatos do bairro, que por dentro de casa, de janelas escancaradas e de luz apagada, sentiam a brisa do sonho que os cortinados de tecido barato e semi-transparente lhes levava em segredo, naquela noite amena. Os pais dos gaiatos aguardavam o dia seguinte, sentados no poial das portas ou em cavaqueira com outros homens que os gaiatos não entendiam.
O Quitote regressava à fronteira do espaço da fantasia, ali junto ao ribeiro por onde era visto junto à tenda albardada, como é do nomadismo, onde o esperava uma fogueira rodeada de sombras.
Quando os gaiatos se encaminhavam para as suas casas, de onde mais um grito confirmava o seu regresso para os sonhos que a noite traria, o bairro começava a cobrir-se de neblina, aconchegando a coragem daquela gente, num casulo de esperança, ali às portas da cidade amuralhada